domingo, janeiro 10, 2010

Direitos humanos

Folha de S. Paulo - 10/01/2010
Documento do governo erra ao tentar doutrinar a sociedade e insuflar divisões em temas que exigem busca de consenso

IMPRESSIONA a latitude do espectro de temas, planos e diagnósticos do 3º Programa Nacional de Direitos Humanos, divulgado há três semanas pelo governo Lula.

De imediato criticado pelos comandantes militares, que o qualificaram de "insultuoso, agressivo e revanchista", o documento recebe agora críticas também de setores da Igreja Católica e de representantes do agronegócio. Isso por propor, além da criação de uma "comissão nacional da verdade", com o objetivo de examinar as violações de direitos humanos durante a ditadura, a descriminalização do aborto e a "regulamentação" dos mandados de reintegração de posse - no intuito de proteger invasores de terra.

Temas como o Estatuto do Índio, a taxação de grandes fortunas e os "impactos da nanotecnologia" foram incluídos.

Além disso, uma facção que não convive bem com a crítica mais uma vez se aproveita de sua posição no governo para apregoar o controle da imprensa. A ideia é "elaborar critérios de acompanhamento editorial" a fim de criar um ranking de veículos supostamente comprometidos com a doutrina enunciada no documento.

É fato que a definição do que sejam direitos humanos tem conhecido ampliação constante desde sua votação pela Assembleia Nacional francesa em 1789, abrangendo, ao longo do século 20, também os direitos sociais e a proteção de minorias. Seria assim possível arguir que todos os temas tratados no texto se relacionam, em última instância, com o título que os encabeça.

Ao reuni-los numa única e ampla carta de intenções, no entanto, o documento avança sobre a competência de várias áreas do governo, além do Legislativo e até do Judiciário. Essa desmedida atropela os trâmites democráticos e dificulta o encaminhamento de discussões específicas.

Se interessa ao governo, por exemplo, encampar a cabível discussão sobre a descriminalização do aborto, compete-lhe mobilizar sua base e tentar aprovar um projeto de lei no Congresso.

Agrupadas de forma indistinta, com apelos vagos à mobilização de diferentes esferas de governo, tais iniciativas servem apenas como uma compensação retórica a grupos de interesse específicos, muitos deles derrotados pelos fatos ou pelas escolhas políticas da administração petista.

Ao mesmo tempo em que cabe ao governo apresentar com clareza suas opções e usar as vias políticas adequadas para tentar aprová-las, não se justifica o uso oportunista de posições de Estado para ditar programas que, na sociedade civil, estão longe de angariar consenso. Como tem sido típico no governo Lula, confunde-se, mais uma vez, a lógica militante de partidos, sindicatos e ONGs com a ética da responsabilidade, que deveria prevalecer no trato da coisa pública.

Revive-se, em microcosmo, uma das piores tradições do esquerdismo, derrotada no decurso do século passado. Um grupo diminuto se elege senhor da razão e da história e se julga no direito de impingir suas posições à população.

Tais investidas terão escassa, para não dizer nenhuma, consequência prática, e esse não deixa de ser um indicador de que a sociedade brasileira amadureceu.

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