A atmosfera de desconcentração, típica de fim de ano, levou a que, na solenidade de lançamento do Programa Nacional de Direitos Humanos, no dia 21 de dezembro, uma pajelança promovida pela esquerda do governo, o maior destaque fosse o novo penteado da ministra Dilma Rousseff, fotografada em público sem peruca. Era a primeira aparição da ministra sem disfarçar efeitos da quimioterapia. Em seguida, viria à tona o primeiro efeito deletério do programa: uma crise militar, com o pedido de demissão do ministro Nelson Jobim e dos comandantes do Exército, da Marinha e da Aeronáutica. Com razão, pois, ao contrário do que fora negociado, o tal programa colocava (e coloca) uma cunha na Lei da Anistia para punir “torturadores”. A anistia fora recíproca, negociada entre generais e a oposição no final da década de 70, mas sua revisão, como engendrado no governo pelos ministros Tarso Genro, Paulo Vannuchi e outras autoridades, não o será, caso a proposta revanchista tenha curso.
Ou seja, militares daqueles tempos são possíveis réus, mas não exguerrilheiros aboletados em altos cargos oficiais. Lula conteve Jobim e comandantes com um aceno à revisão do texto que assinara e embarcou para descansar na Bahia. O caso precisa de um desfecho.
As repercussões indicavam que se trataria de mais um tiro n’água do núcleo de esquerda do governo. Por inconstitucional, segundo juristas, e inconveniente do ponto de vista político — coloca o país na máquina do tempo e o projeta ao passado dos curtos-circuitos militares típicos de repúblicas bananeiras , a iniciativa de Vannuchi, Tarso e cia. tendia a se esvaziar e, junto com ela, o Programa de Direitos Humanos.
Mas o programa é bem mais do que a criação de uma “Comissão da Verdade”, termo ao gosto dos regimes stalinistas e que denuncia o viés autoritário dos comissários que o idealizaram. As 73 páginas, com 23 mil palavras, do “programa de direitos humanos” são, na verdade, uma plataforma de governo — e de um governo na contramão do que tem sido o de Lula, por sete anos e quase um mês.
Esta plataforma contrabandeada sob o disfarce de um “programa de direitos humanos” retoma o espírito do velho PT, do encontro nacional de dezembro de 2001, em Recife, quando o candidato Lula ainda se apresentava como aquele contrário a “tudo isso que aí está”. Em meados da campanha, em 2002, porém, baixou o bom senso no candidato e em assessores próximos, e foi lançada a Carta ao Povo Brasileiro, pela qual Lula se comprometeu a respeitar as bases da economia de mercado e a não cometer desatinos como moratórias e confiscos.
E deu certo.
O “programa de direitos humanos” propõe, além do fim unilateral da anistia, 27 leis, institui mais de 10 mil instâncias do tipo ouvidores, observatórios, e sempre na linha de vigilância do Estado sobre a sociedade.
E vai adiante: prevê a regulamentação da taxação de fortunas, o financiamento público de campanha, a reformulação da legislação dos planos de saúde, a fiscalização de “empresas transnacionais”, e, não poderia faltar, facilita a invasão de terras, atropelando a propriedade privada. Este é outro aspecto grave do “programa de direitos humanos”: intervém em área do Poder Judiciário, para criar uma instância de mediação em conflitos agrários antes da ação do juiz.
É como se o núcleo de esquerda no governo, a 11 meses do fim da Era Lula, resolvesse esvaziar suas gavetas de projetos e incluí-los todos num mesmo texto. A Secretaria de Direitos Humanos, na tentativa de defender o aleijão, justifica que todas as propostas vieram da “sociedade organizada”, elaboradas em inúmeros fóruns instalados em todo o país. Tenta, assim, dar tinturas de legitimidade democrática à instituição de instrumentos de subjugação da nação ao Estado. Balela, esse sistema de consulta mobiliza apenas corporações e grupos de militantes com afinidades ideológicas, uma ínfima minoria num país de 190 milhões de habitantes.
É sempre um jogo de cartas marcadas.
Outra proposta exótica é a montagem de um arcabouço de democracia direta, a joia da coroa da ideologia populista, demagógica do chavismo.
A defesa da democracia direta reflete a intenção de destruir o sistema de representação política, assentado na independência entre os Poderes, com a criação de um regime a ser conduzido caudilhescamente por um líder carismático todopoderoso, manipulador das vontades ditas populares a serem expressas em plebiscitos e referendos.
Aposenta-se a democracia representativa, com seus pesos e contrapesos, funda-se o Estado unitário bolivariano, sem lugar para opositores.
Na crise militar, Lula confidenciou não ter lido o decreto do “programa” que assinara. De fato, se lesse veria que seu governo está sendo usado para um golpe via Legislativo, bem ao estilo chavista. Tem agora a chance de salvar o governo de pelo menos uma grande trapalhada tragicômica. Cabe, ainda, destacar o papel da Casa Civil em todo o imbróglio. Como nada chega à mesa do presidente sem o aval dessa instância, a candidata Dilma Rousseff tem o nome ligado à iniciativa.
Assim, mesmo que Lula mande engavetar os absurdos que assinou sem ler, o projeto chavista de governo será inevitável tema na campanha eleitoral, por ter sido avalizado pela ministra.
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