terça-feira, agosto 06, 2013

No Brasil, o século XX terminou em junho de 2013
Adauto Damásio - BLOG DO NOBLAT (GLOBO)
Uma das consequências práticas das manifestações populares de junho de 2013 foi o definitivo fim do ‘Fla-Flu’ promovido pelos dois partidos supostamente antagônicos, PT e PSDB. Mesmo que possamos interpretar tais manifestações como uma grande catarse coletiva sem bandeiras e reivindicações objetivas, sem coesões e consensos (e é assim que eu as interpreto), teve o mérito de deixar os donos do poder de Estado preocupados com o “status quo” vigente. Governo federal e suas oposições não foram poupados pelos manifestantes. Todos tremeram e temem o retorno dos mesmos às ruas.
De meu ponto de vista, foi uma catarse que apenas escancarou o divórcio histórico entre Estado e sociedade, seja esse Estado governado pelo PT ou pelo PSDB. Isso não é nenhuma novidade, vistas as reflexões de Raimundo Faoro que demonstrou como o Estado brasileiro nasceu e foi formado para ignorar a sociedade desde a chegada de D. João VI ao Brasil em 1808.
Mas quais os outros fatores que contribuíram para tais eventos e qual outra interpretação possível? Lanço aqui um ‘esqueleto’ de interpretação para os historiadores e cientistas sociais do futuro.
Minha tese é a de que a sociedade brasileira, ao contrário das experiências históricas dos Estados Unidos, da Europa, de países orientais como o Japão e mesmo de alguns países da América Latina, teve seu processo de formação realizado ao longo do século XX e hoje, mesmo sem a completude do processo, passou a ter características do que podemos chamar de sociedade. Nesse sentido, a catarse de junho de 2013 marca, de forma não contraditória, o final e o início de processos históricos contínuos.
Indivíduos esparsos e com muito pouca identidade cultural acumularam condições para iniciar uma luta e se tornarem cidadãos; descobriram que, para isso, precisam viver em sociedade no seu sentido amplo, no sentido atribuído pelos liberais, no sentido que permite o início da luta para que o Estado passe a representar a sociedade.
Já conhecemos de sobejo as características limitantes da nossa colonização para explicar as dificuldades de organização de uma sociedade, Estado e mercado equilibrados e desenvolvidos. No entanto, refletimos pouco sobre as grandes transformações pelas quais passou o Brasil ao longo do século XX.
Em nosso país, Estado e capital sempre estiveram em sintonia e organizados de forma a garantir seus interesses, porém aquilo que o liberalismo denominou “sociedade” nunca existiu de fato no Brasil, a não ser na interpretação elitista do conceito. Sociedade no Brasil sempre foi sinônimo de “união das elites”.
Até 1930, o Brasil foi um país fundamentalmente agroexportador. As mudanças de rumos da economia a partir da denominada Revolução de 1930 criaram as bases de um processo que se estendeu por todo o restante do século XX, com seu auge no final do mesmo século.
Quais foram as consequências desse processo nos níveis da cultura, da tecnologia e das mentalidades? Minha tese simples é que geraram as condições para que a sociedade produzisse essa revolta contra o Estado e contra os “donos do poder”, para usar a expressão de Faoro, como já afirmei acima. Quais são meus argumentos?
De forma sucinta:
*A existência de lutas sociais por aquilo que podemos denominar hoje de direitos difusos sempre acompanhou a História do Brasil. Trata-se de uma grande farsa a afirmação de que a História do Brasil é pacífica. Não demonstrarei aqui essa afirmação, por ser óbvia. Em toda a nossa história, de uma forma ou de outra, o povo (mesmo não formando o que podemos denominar de sociedade), lutou por seus direitos.
*A partir de 1930, o início do processo de industrialização deu origem à urbanização do país. Hoje, cerca de 85% da população vive em áreas urbanas, algo diametralmente oposto ao que ocorria em 1930. A urbanização é, como sempre foi, um fator de progressismo e de formação da sociedade. Um ditado popular na Baixa Idade Média, afirmava: “o ar da cidade liberta”. Ao longo das décadas, o povo brasileiro foi se libertando do conservadorismo rural e acumulando experiências políticas libertárias no espaço urbano.
*A democracia brasileira é um fenômeno recentíssimo. Temos, a rigor, 25 anos de democracia plena. Claro, todas as nuances e aperfeiçoamentos dessa nascente democracia estão em curso. Nossa cultura política, que começa, timidamente, a ser alterada, é marcada pela violência do Estado e pelo autoritarismo dos governos. Os donos do poder sempre se protegem com suas forças policiais.
*O sistema de ensino básico e superior, no Brasil, teve seu processo e universalização iniciado nos anos 70 e alcançou plenitude no final dos anos 90. Mesmo com todos os problemas de qualidade, evidentes e que emperram um crescimento substancialmente qualitativo, os índices são extraordinariamente mais positivos do que eram até o final dos anos 20.
*O Brasil sempre foi, do ponto de vista territorial, um continente e o mundo sempre “foi grande”. As barreiras impostas pela sua dimensão dificultaram as comunicações, transportes e mobilidade ao longo de toda sua história. Hoje, o “Brasil é pequeno, o mundo é pequeno”. O processo de industrialização e urbanização, mesmo com todas as suas limitações e características por vezes conservadora, criou as condições para que o Brasil acompanhasse os avanços tecnológicos surgidos e aperfeiçoados nos países desenvolvidos. A revolução no mundo das comunicações e da informática permitiu a integração dos indivíduos que, gradativamente, criam as condições para a formação de uma sociedade. Sociedade que se comporta como tal ou, ao menos, deseja isso.
Como escrevi, esse texto é apenas um ‘esqueleto’ em que certamente faltam muitos ossos. Mas é uma possibilidade interpretativa para a catarse vivenciada em junho de 2013.
É uma interpretação que considera certa linearidade. Evidentemente, essa linearidade não é absoluta. O processo foi perturbador do ponto de vista civilizatório. Duas ditaduras ferozes, racismo, urbanizações construídas com extrema violência e exclusão, entre outras...
Mas o Brasil de junho de 2013 não nasceu em maio do mesmo ano. Não nasceu do facebook apenas...
Somente daqui a 50 anos ou mais, poder-se-á ter uma interpretação abrangente desse processo, mas eu defendo aqui uma tese singela: trata-se do fim de um processo de grandes transformações vivenciadas ao longo do século XX e o início de outro cujo teor desconheço, pois os historiadores são apenas “profetas do passado”.
No Brasil, o século XX terminou em junho de 2013.

Adauto Damásio é Mestre em História - Unicamp.


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