sábado, janeiro 02, 2010

Em 2010, Brasil verá mais escândalos de corrupção, garante filósofo



O Brasil acaba de sair de mais um ano repleto de escândalos de corrupção. Segundo dados do monitor de escândalos, do colunista do UOL, Fernando Rodrigues, só em 2009 foram mais de 100 casos – o mais recente com direito a dinheiro nas meias. Mas qual a projeção de escândalos para o ano novo? Na avaliação de Roberto Romano, professor de Ética e Filosofia Política da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e um dos maiores intelectuais do Brasil contemporâneo, a corrupção é sistêmica e jamais se interrompe.

“A corrupção domina tempos e espaços diversos, dentro de uma lógica: o domínio político irresponsável dos recursos nacionais. No mesmo instante em que Brasília recebe as atenções, no interior de Minas Gerais, Roraima, Rio Grande do Sul e em todas as regiões, grupos assaltam o erário”, lamenta o filósofo.

Segundo o estudioso, em qualquer governo, seja ele do PT, do DEM ou do PSDB, se os políticos quiserem apoio em seus projetos no Congresso, devem comprar os votos dos parlamentares, “e para isto encampa as famosas emendas”, avalia. Em entrevista exclusiva ao Contas Abertas (CA), o filósofo explica porque e como surgem os escândalos conhecidos como mensalões. “Se a compra do voto, nos parlamentos, é quase oficial....”, conjectura Romano ao refletir sobre as emendas parlamentares, “o problema é grave”.

Acompanhe na íntegra as projeções de Roberto Romano:

CA – Como o senhor vê o terceiro mensalão ("do DEM"), se levarmos em conta que antes deste vieram à tona os mensalões "do PT" e "do PSDB"?

Romano – A repetição dos escândalos em intervalos cada vez menores, disfarça outro ângulo cronológico da prática corrupta: a sincronia que rege a corrupção em todos os níveis do Estado. No mesmo instante em que surge um escândalo, paralisando por alguns momentos os seus protagonistas, outros indivíduos e grupos continuam seu comércio ilegal das coisas estatais e privadas. De maneira idêntica, os escândalos surgem em espaços diversos do território nacional. Mas quando um deles vem à tona, e seus atores são investigados, em outros lugares grupos diversos assaltam os cofres públicos.

Na verdade, os nomes dos vários mensalões pouco importam. Se eles são nomeados como se fossem do PT, do DEM, do PSDB ou de qualquer outro partido, o relevante encontra-se no fato de que eles sinalizam um complexo de ocorrências estruturalmente idênticas. Dada a concentração das políticas públicas no Executivo federal, os Legislativos perdem o poder de iniciativa naquelas mesmas tarefas e se desmoralizam. Assim, o dever do Congresso é distorcido. Em vez de ser a fonte das leis e fiscais do Executivo, os parlamentares são reduzidos ao nível de mediadores entre os cofres da União e suas regiões.

CA – Como surgem esses mensalões?

Romano – Os eleitores dos vários espaços regionais sabem que o meio eficaz para o retorno e aplicação de impostos encontra-se nas costumeiras “negociações” na boca do caixa, ao redor do orçamento nacional. Esta política abre a via da prática corrupta, e tem nome de “centrão” na história de nossa república. E seu modus operandi, ainda hoje inalterado, também possui mote político: “é dando, que se recebe”. O Executivo, em qualquer governo, seja ele do partido que for, se quiser apoio aos seus projetos no Congresso, deve comprar os votos dos parlamentares e para isto encampa as famosas “emendas”.

Esse processo se tornou obrigatório tanto para os parlamentares quanto para os ministérios, em especial àqueles responsáveis por “obras”. Ele é uma espécie de “mensalão” porque, na verdade, trata-se de uma compra de parlamentares no atacado. As verbas são liberadas se existir apoio ao governo. A mesma lógica e estrutura se espelha nos estados e nos municípios. Quem apoia, de preferência sem restrições, os desideratos do Executivo, obtém recursos, importância política e cargos. Temos, pois, estabelecido como “natural” a compra de um poder pelo outro. O que só tem um nome: corrupção de Estado.

Os parlamentares, do vereador ao senador, precisam agradar, imperativamente, as suas bases nas regiões, nos estados, nas cidades e nos bairros. Logo, eles estão sempre dispostos tanto a apoiar quanto a boicotar os planos do Executivo. Eles apoiam se os recursos para as suas bases eleitorais forem abundantes. Boicotam, se eles não bastam para atender os alvos perseguidos. Como a compra e venda no atacado são incertas – dado o caráter finito dos recursos contidos nos cofres ministeriais ou dada a lentidão burocrática, devida à máquina excessiva do aparelho estatal em plano federativo – vem o comércio no varejo.

Para compensar o choque de desconfiança de suas bases, quando estas se decepcionam com a inexistência das “obras”, os parlamentares precisam garantir sua reeleição reforçando comitês e propaganda, incluindo-se aí a compra dissimulada ou direta do eleitor. Como tudo, nesta seara, tal operação se torna cada dia mais cara. Se a compra do voto nos parlamentos é quase oficial e praticada pela maioria dos representantes (incluindo-se os da oposição “compreensiva”), agora a negociata não pode ser tão escancarada. E surgem os procedimentos que vieram à tona com os vários mensalões.

A partir daí, o interesse privado dos representantes fala mais alto do que as suas pretensas “causas” regionais ou locais. De comprados, eles se tornam fonte de chantagem contra os governos. Se as dificuldades destes últimos aumentam, sobe o preço da manobra clandestina. Os parlamentares, além das verbas e obras para seus representados, exigem dinheiro, cargos, vantagens para seu grupo de apoio ou para suas próprias pessoas. E temos o “mensalão”, nome genérico enganoso, porque serve para designar as mais diversas formas de política corrupta.

Entre muitas, cito o caso das “verbas indenizatórias” que servem para tudo, incluindo-se passeios turísticos, mas cuja função é garantir que os gabinetes dos representantes sejam, de fato, escritórios eleitorais pagos pelos contribuintes. Os mensalões, portanto, brotam da estrutura concentrada do poder federal, espelhada pelos Estados e municípios.

CA – Existe alguma maneira de acabar com esses escândalos?

Romano – Nosso Estado nasceu sob o sinal da contra-revolução, ou seja, nele tudo foi idealizadodo para impedir o controle dos dirigentes políticos. Esta ética conservadora foi assumida em toda nossa história, inclusive por operadores do Estado oriundos do pensamento liberal e da esquerda. Enquanto formos um império e mantivermos uma rede burocrática imensa e pouco vigiada e os poderes do Legislativo e do Judiciário forem apenas nominais quando se trata de oligarcas e poderosos, não existe meio eficaz de combater a corrupção.

No Congresso, mais de 60 propostas foram apresentadas para diminuir a corrupção. Mas o problema é anterior, pois todas elas prejudicariam todos os que, hoje, estão presentes no Congresso. Muitas delas são iniciativas louváveis, mas impotentes diante do aparato arbitrário que domina o país. Mantida a atual estrutura de excessiva centralização estatal, a corrupção tem dias prósperos pela frente.

CA – Então uma profunda reforma política poderia evitar novas incidências de mensalões?

RomanoO mais imediato, para além da reforma política, é exigir maior federalismo no Estado brasileiro e a instauração do dever próprio a cada um dos Poderes. Atualmente o Executivo legisla com as Medidas “provisórias”, pois não pode contar sempre com a sua base de apoio aliada, cujo preço não raro excede os limites financeiros do país e as barreiras de toda decência. O judiciário já começou a legislar de fato, interferindo em matérias de competência do executivo ou legislativo. E as casas das leis se transformaram em empórios onde se vende e se compra tudo, pouco encaminhando o que realmente interessa à cidadania.

No escândalo Arruda, por exemplo, existe o nome de um notório lobista. O projeto que regulamenta o lobby está parado no Congresso, mostrando que existe a determinação objetiva de se manter o status quo, no qual os conflitos de interesse jamais são referidos, mas decidem matérias essenciais do Estado. No plano da reforma política, o mais urgente não tem sido sequer mencionado: democratizar as direções dos partidos brasileiros, instaurando prévias obrigatórias e consultas aos eleitores da base partidária, na escolha de programas, alianças e direções.

Do modo como andamos, os partidos políticos são feudos dominados por grupos oligárquicos. Muitos dirigentes, controlando seus partidos há décadas, definem os acordos, as indicações, os fundos financeiros. Ninguém é candidato contra a sua vontade, o que impede qualquer renovação eficaz dos quadros. Sem dúvida, tal poder de controle por aqueles pequenos grupos, favorece muito os fenômenos da corrupção. Basta recordar tudo o que confessou Roberto Jefferson, um dono do PTB, no episódio do mensalão.

CA – Partidos envolvidos em mensalões anteriores têm criticado os envolvidos no mensalão de agora. Como o senhor vê isso?

Romano – É devido a tal envolvimento que digo estarmos vivendo uma crise generalizada do Estado. Fenômenos como o mensalão abarcam integrantes de todos os partidos. E, como sabemos pela sabedoria popular, o roto não pode falar do rasgado. Não existe um só partido brasileiro que não tenha culpa neste cartório.

A questão, no entanto, é bem mais difícil: qual dos três poderes tem legitimidade para julgar os crimes ou mesmo delitos menores? Quem os pune? E quantos foram punidos? Porque não resolvemos questões como a excessiva centralização do poder no Executivo federal e a centralização decisória nas mãos dos oligarcas dos partidos. Não temos capacidade coletiva sequer para tipificar os crimes, dando-lhes solução jurídica à altura. Insisto sobre a falta de regulamentação do lobby. Ela interessa aos corruptos de todos os naipes, em todos os setores do Estado.

Um outro item urgente da cidadania é lutar pela despolitização da justiça, começando com a mudança na maneira de indicar os membros do Supremo Tribunal Federal. A indicação pelo presidente, ratificada no Senado, é um verdadeiro atentado à inteligência dos eleitores. Por outro lado, há anos o país assiste uma afronta direta às leis eleitorais, tanto por parte dos governantes quanto da oposição. Anúncios na TV, no rádio, na imprensa escrita, inaugurações de obras, etc., tudo segue o rumo da mais explícita propaganda ilegal.

Estamos chegando ao tempo, no Brasil, em que é preciso retomar conceitos como o de anomia (falta de lei ou ausência de normas de conduta), proposto por Durkheim, modificando-os para entender a nossa triste realidade sócio-política e jurídica.

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Amanda Costa e Milton Júnior
Do Contas Abertas

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