quarta-feira, dezembro 09, 2009

Valor Econômico
Uma nova cultura, uma nova atitude
Rosângela Bittar

Defender uma reforma política para instituir o financiamento público de campanha como forma de combater a falta de caráter do político brasileiro já não é um argumento que comova o eleitorado. Ao contrário, causa mais irritação pois sabe-se que, uma vez instituído o financiamento público, o candidato vai continuar tomando dinheiro de financiadores privados, em grande quantidade sem registrá-lo. Quem oferece mais leis eleitorais para acabar com a corrupção política e administrativa sabe que a lorota não vai pegar. É um antídoto apenas verbal a que se recorre cada eclosão de escândalo. Como o Brasil sai deste círculo, mais do que vicioso?

O presidente do Tribunal Superior eleitoral e ministro do Supremo, Ayres Britto, vem de uma experiência - está concluindo seu mandato de presidente - importante para diagnosticar e combater o mal. Uma função em que viu de perto as mazelas do sistema eleitoral brasileiro, que passam por gerações e gerações sem solução à vista.

O financiamento público de campanhas resolve o problema? Britto acredita que não: O financiamento já é público e privado. É privado porque as empresas podem doar até 2% do seu faturamento bruto do ano fiscal anterior, e os particulares podem doar até 10% de sua renda bruta do ano fiscal anterior. O componente público existe, e não é pouco. Tem o fundo partidário, que deve estar em R$ 200 milhões de reais por ano. Este é o financiamento direto, mas tem o indireto, que é público também: é o horário gratuito de rádio e televisão que deve dar uns R$ 400 milhões por ano. Já temos um sistema expressivo de irrigação de verbas para os partidos.

Se o problema é de caráter, como superá-lo?

Com uma nova mentalidade, uma nova cultura. Uma cultura ética, que passa pelo caráter. Uma cultura ética e uma cultura democrática. Isto é o que nos faz falta.

Como desenvolvê-las? É um processo educacional, escolar e também familiar. Nós temos eleição a cada dois anos e a chance de educar politicamente o povo, em concreto. O momento é esse, de divulgação de programas partidários, de programas governamentais, de debate de ideias, de ideologias partidárias.

Isto é educação. E permeando tudo temos a democracia. A democracia é um processo de superávits crescentes no plano ético. É de se supor que a vivência democrática melhore os costumes eleitorais. E conscientize o povo dessa desgraça que é o caixa dois que, mais do que um modelo espúrio de financiamento de campanha, é um modelo maldito, porque desgraça a vida partidária do Brasil no plano ético e no plano democrático.

O ministro identifica: Caixa dois é o início de quase toda corrupção administrativa em nosso país.

E explica: Caixa dois é dinheiro a rodo, por debaixo dos panos, dinheiro não contabilizado. E quem contribui por debaixo dos panos vai cobrar o retorno do capital por debaixo dos panos.

Sob a forma do quê? De obras e serviços, de dispensa indevida de licitação, de manipulação de verbas orçamentárias, de nomeação para cargos estratégicos. É a ciranda da corrupção administrativa.

Ayres Britto diz ter percebido o que representa o caixa dois no financiamento de eleições, com mais nitidez, em sua passagem pelo Tribunal Superior eleitoral, onde também se destacaram, para ele, outras distorções da prática eleitoral: Temos a captação ilícita de sufrágio (compra de voto), o abuso do poder econômico, o abuso do poder político, o manuseio da máquina administrativa para fins eleitorais, o abuso dos meios de comunicação.

Mas o caixa dois é o carro-chefe: Pude perceber a nocividade do caixa dois para os nossos costumes éticos e democráticos, é uma verdadeira caixa preta de um avião supersônico.

Diante da constatação de que, a esperar solução da educação e da prática democrática, a superação da corrupção política surgirá, se surgir, de um processo lentíssimo, para muitas gerações à frente, o ministro Ayres Britto discorda. Não digo que é lentíssimo, digo que é um processo múltiplo. Passa pela educação formal, pela família, pela realização de cada eleição em particular a cada dois anos, e passa pelo processo democrático em si, na medida em que o processo democrático é um trazer a lume tudo o que está por debaixo dos tapetes do poder.

Para o ministro, a democracia tem dois pilares que considera mais vistosos. Um, a informação em plenitude, outro, a transparência. O ponto de arremate seria o próprio poder judiciário, que está convocado para não fazer interpretações lenientes da legislação, para não dizer interpretações cúmplices.

As transgressões, a seu ver, deslegitimam a investidura nos cargos políticos.

Sobre o didatismo, de resultados teoricamente mais rápidos, da prisão para os criminosos, o ministro comenta que, quando há crime, o Ministério Público atua na esfera penal e pode haver reclusão. E também não parece especialmente animado em aumentar a regulação do processo eleitoral, criar novas e mais duras regras. Não padecemos de maior déficit de legislação. Padecemos de maior déficit de capacidade de interpretar a legislação numa linha mais rigorosamente constitucional, que é a linha da depuração de nossos de nossos costumes partidários e eleitorais. É um novo olhar jurídico sobre a realidade, uma nova atitude. É preciso vestir a camisa da Constituição, impedir que ela seja um elefante branco. O desafio do Poder Judiciário é se tornar uma esfera de poder verdadeiramente militante da Constituição.

Quanto à classe política, o ministro realça exceções, os políticos à altura da política que, a seu ver, existem: A política é a mais bonita das atividades humanas, a mais realizadora e essencial, pela política serve-se à sociedade inteira, o tempo todo. Queremos contribuir para que a classe política seja cada vez mais digna da política.

Rosângela Bittar é chefe da Redação, em Brasília. Escreve às quartas-feiras. E-mail rosangela.bittar@valor.com.br

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