Palmada
Francisco Daudt, FOLHA DE SÃO PAULO
Nascemos pequenos trogloditas, a educação é um processo civilizatório; 10 mil anos em alguns
Há um fato que a maioria de nós não sabe ou esquece: o exercício da
autoridade, ou das leis, se baseia, em seu extremo, no uso da violência.
Como não pode existir lei sem a punição correspondente, senão ela será
desprezada, a punição vai, desde a ameaça, à execução de castigos, é por
isto que precisamos de forças armadas, como o visto nas ocupações das
UPP nos morros do Rio.
Há mais de 10 mil anos o homem vive em cidades. Convive com pessoas que
não são de sua família, nem de sua tribo. Antes disto, qualquer contato
com estranho resultava em luta mortal. Estranho = inimigo. É fato até
hoje, na Papua - Nova Guiné, se dois estranhos conversando não
descobrirem parentes em comum num encontro, partem para um embate
mortal.
Como foi possível, pois, a convivência pacífica de estranhos em cidades?
Pela instituição do Estado, que se tornou monopolista da violência.
Pela invenção das leis. Pelo estabelecimento das punições aos
transgressores. O Código de Hammurabi impunha punições bárbaras: "Olho
por olho, dente por dente". As leis e as punições foram se tornando mais
civilizadas, mas o princípio do monopólio da violência pelo Estado
continua sendo um dos pilares da democracia. Você tem uma contenda com
seu vizinho? Traga-a ao Estado, pois se você quiser resolvê-la com suas
próprias mãos, você será criminoso também. Há exceções: legítima defesa e
violência consensual (MMA e S&M).
Então, por que eu sou contra a lei da palmada? Imagine levar uma criança
transgressora às barras do tribunal para que o Estado a punisse. É
coisa de doido.
Defendo que a palmada (que promove mais susto do que dor ou lesão) seja
igual à atitude dos gorilas, que impõem sua autoridade ao bater no
peito, no urro e no avanço assustador sobre o oponente, sem danos
físicos. Eles só dizem: "Eu sou mais forte, eu estou no comando".
Castigos que causam lesão já são punidos por leis. Uma família não passa
de um pequeno Estado, com chefe responsável pelas leis e as punições
que impõe. Nascemos pequenos trogloditas, a educação é um processo
civilizatório. Dez mil anos em alguns. Não precisamos da tutela do
Estado maior para dirigir nossas famílias. É tentativa de autoritarismo,
sutil que seja. Imagine a cena de um chefe de família amedrontado pela
lei da palmada e pela denúncia do vizinho. Qual a alternativa? Convencer
com palavras seu filho de um ano que ele não deve machucar seu irmão
bebê? Que tal, hein? Sua raiva sairá muito mais cruel e sutil. Você já
levou "gelo"? Então sabe do que estou falando. Pais podem torturar seus
filhos sem encostar um dedo.
Daí, uma proposta singela, vinda dos islâmicos: a adoção de chibatadas
como pena alternativa para pequenos delitos. Deixemos de hipocrisia: a
prisão para quem não ameaça a sociedade é castigo brutal, uma escola de
revoltados. "Ah, ele vai virar 'noivinha' no primeiro dia." É tortura
terceirizada.
Posto diante da escolha: dez chibatadas pelo carrasco mecânico (ajustado
para não causar lesões) ou dez meses de prisão? Adivinhe a escolha?
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