quarta-feira, fevereiro 24, 2010

Agricultura familiar: uma leitura apressada

Autor(es): Reinhold Stephanes
Valor Econômico - 24/02/2010

Políticas visam eliminar a pobreza rural com foco na integração econômica e social dos pequenos produtores

O equivocado censo relativo a um grupo fortemente heterogêneo de produtores rurais, intitulado de agricultores familiares, ganhou uma leitura apressada e trouxe à tona uma disputa que vai tomando proporções absurdas, dentro e fora do governo. E deve ser vista com preocupação porque incita a divisão imaginária e maniqueísta dos agricultores, distorcendo dados e tomando como iguais agriculturas muito diferentes, variando entre aquelas famílias rurais que produzem apenas para o autoconsumo e as propriedades mais eficientes e tecnificadas, que hoje são a maioria e atuam comercialmente. Com objetivos econômicos radicalmente diferentes, todas têm em comum, apenas, a gestão familiar.

O conceito central correto que interpreta tais diferenças é o da sociabilidade capitalista, processo social que gradualmente transforma as que produzem para o próprio sustento, integrando-as economicamente. Assim, em certo momento histórico se verificará a existência apenas do segundo grupo, com todos os produtores sendo ativos agentes econômicos. Essa foi a trajetória agrária dos países avançados, inexistindo razões lógicas para imaginar que o Brasil poderá seguir rumo radicalmente estranho a esse padrão.

No Brasil, a expressão "agricultura familiar" ainda abarca visões muito distintas, que costumam variar de acordo com a ideologia de quem a emprega, gerando nefastas manipulações, cujos objetivos são exclusivamente políticos. Há até perspectivas sonhadoras que apostam em um pequeno produtor anticapitalista e que pregam o retorno a um mágico comunitarismo coletivista e não mercantil. A maioria dos produtores discorda desse conceito, principalmente os que fazem parte da classe média rural.

Ilusionismos à parte, tem sido escamoteado que os critérios para nomear esses agricultores como familiares nasceram de uma demanda social dos anos 1990. Qual seja, uma política de financiamento da produção específica para os estabelecimentos de menor porte e sob gestão familiar. Nesse sentido, formalizado em 1994 para assegurar os recursos financeiros àqueles produtores, o Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) foi bem sucedido, pois aumentou notavelmente o volume de crédito e o número de agricultores atendidos, sobretudo sob a atual administração federal.

Causa espanto que muitos desconsiderem nossa história recente, começando com a revolução produtiva iniciada na década de 1970, que transformou o Brasil na atual potência agrícola. A espetacular modernização agrícola tem irrigado o campo sob densa capilaridade monetária, alicerçando as cadeias produtivas e estimulando um contínuo aperfeiçoamento tecnológico. A significativa elevação da produtividade agrícola apenas espelha tal fato. O que justificaria, portanto, a reiteração do passado e o discurso polarizador de apenas dois grupos sociais de produtores, os familiares e os não familiares, quando a agricultura é cada vez mais diversificada social e economicamente? Afinal, a maioria dos pequenos agricultores, especialmente no Centro-Sul, vinculados a cooperativas, também participa do agronegócio, ou seja, das cadeias produtivas constituídas no período contemporâneo. E a integração social e econômica, no final, é o que todos almejam.

A democratização do crédito rural já é uma realidade e, dessa forma, precisamos suplantar tais equívocos, reformulando o atual hibridismo ministerial e garantindo um segundo momento de modernização, consentâneo com as exigências atuais, especialmente as ambientais. Políticas diferenciadas, por exemplo, que atenuem a heterogeneidade ignorada por aqueles que distorcem o conceito de agricultura dita familiar. Ações destinadas a eliminar a pobreza rural, que hoje está concentrada em regiões do Norte, principalmente e, do Nordeste, mas sempre almejando a plena integração econômica e social dos produtores de menor porte.

Em especial, é preciso focar na esquecida classe média rural, que se tornou a maior credora da modernização econômica nos países de agricultura avançada. Apoiá-los, cada vez mais, sob políticas que promovam a prosperidade sócio-econômica e estimulem um modelo ambientalmente sustentável, essa é a nossa tarefa central.

O Ministério da Agricultura, mobilizando o melhor da ciência agrícola sob o comando da Embrapa, com apoio da rede estadual de pesquisa, e fundando-se em sua centenária experiência a serviço de todos os agricultores, está plenamente preparado para liderar esse desafio. Superados os equívocos que emperram essa quadra histórica, a agricultura brasileira será ainda mais exemplar para o mundo.

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