segunda-feira, setembro 21, 2009

Folha de S. Paulo

Liberdade de imprensa e democracia

Ives Gandra da Silva Martins

O AUTORITARISMO está de volta a alguns países da América Latina, com risco de contagiar muitos outros. E um dos principais sintomas desse avanço do retrocesso está nas contínuas investidas dos governos na tentativa de calar os jornais de oposição.

As sucessivas críticas que se tem feito ao regime bolivariano da Venezuela -em que um histriônico presidente cerceia cada vez mais todas as manifestações dos que lhe são contrários, cortando-lhes os pulmões da manifestação democrática pelo fechamento de canais de televisão, rádios e intimidações judiciais- já ganharam dimensão internacional.

No modelo constitucional venezuelano (artigo 232), o presidente pode tudo, desde convocar referendos e plebiscitos até governar com leis habilitantes e dissolver a Assembleia Nacional, o mesmo ocorrendo no modelo equatoriano (artigos 130 e 148), em que o presidente pode dissolver a Assembleia, mas, se esta destituir o presidente, dissolve-se automaticamente. Não diferente é o modelo boliviano, em que os membros da Suprema Corte devem ser eleitos pelo povo por seis anos, candidatando-se por partidos políticos (artigo 182)!
Em todos esses países, há restrições à liberdade de imprensa, sob a alegação de que ela prejudica a vocação bolivariana do povo. Vale lembrar que as três Constituições lastrearam-se em modelos idealizados por uma instituição de estudos espanhola, segundo a qual as democracias só devem ter, de rigor, um representante do povo, que deve convocar o próprio povo a manifestar-se, mediante sucessivos referendos ou plebiscitos.

O equivocado modelo espanhol não reconhece que, das 20 democracias estáveis pós-Segunda Guerra Mundial (Lijphart, Democracies), apenas uma é presidencialista. As outras 19 são parlamentaristas.

É que nos Parlamentos está a totalidade da representação popular (situação e oposição), mas no Executivo está apenas a situação. Em outras palavras: o Executivo encarna apenas a maioria dos integrantes de uma nação, e o Legislativo, a totalidade.

Ao reduzir a expressão do Legislativo a quase nada, tais modelos fazem de qualquer democracia uma estrada larga para as ditaduras, mormente quando têm força para calar a oposição, eliminando seus pulmões, que são os meios de comunicação social.

Apesar do nível cultural do povo argentino, parece que a família Kirchner sucumbiu às lições semiditatoriais de Chávez, Morales, Correa e Ortega (a Nicarágua está tentando aprovar projetos de lei que reduzem a liberdade de imprensa), com a desastrada invasão do jornal Clarín e com a proposta de legislação nitidamente fascista ou bolchevista, voltada a silenciar a imprensa.

Nem mesmo o Brasil, cuja Constituição de 1988 deveria hospedar um modelo parlamentar de governo, mas que na undécima hora transfigurou-se em presidencial, preservando, porém, o equilíbrio entre os Poderes, parece estar imune a tal influência.

Já houve, no governo Lula, duas tentativas frustradas de condicionar a imprensa a um conselho controlador e as manifestações artísticas a outro, o que a sociedade repeliu com vigor. O próprio presidente, não poucas vezes, refere-se de forma pouco apreciativa aos órgãos de comunicação.

E, como realçado em editorial desta Folha (12/9) ou no artigo de Judith Brito neste espaço (27/8), mesmo os membros de instâncias inferiores do Judiciário -cuja corte suprema é claramente a favor da liberdade de imprensa- tomam decisões impondo restrições à liberdade de imprensa.

É necessário que a sociedade brasileira, nitidamente democrática, não se deixe contaminar pela antidemocrática política de nossos vizinhos, em que o crescimento do autoritarismo é evidente. Sem imprensa livre, não há democracia, pois o povo não tem como saber o que ocorre nos bastidores e porões dos poderes senão pelos órgãos de comunicação.

Num país que, depois de 1988, conheceu um impeachment presidencial, uma superinflação e escândalos governamentais -anões do Orçamento, mensalão, Senado...-, só foi possível manter a alternância de poder, impedir a ruptura institucional e assegurar o bom funcionamento das instituições por força do equilíbrio entre os Poderes, do amplo direito de defesa e, principalmente, da liberdade de expressão.

Que esse maior bem de uma democracia seja preservado no Brasil. O povo brasileiro não pode deixar-se contaminar pelos ventos procelosos que fustigam nossos vizinhos. Que a nossa democracia prevaleça sobre as semiditaduras em que vão se transformando alguns países latino-americanos.

IVES GANDRA DA SILVA MARTINS , 74, advogado, professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra, é presidente do Conselho Superior de Direito da Fecomercio.

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