Qualidade da democracia e a crise do Senado
José Álvaro Moisés
Estadão
O que distingue a democracia das alternativas autoritárias não é apenas a possibilidade de os cidadãos escolherem os seus governantes, mas também a de poderem avaliar se o processo de tomada de decisões de governos e Parlamentos atende a seus interesses e preferências. Quando isso falha ou é eliminado, o que está em questão não é se a democracia existe, mas a sua qualidade, ou seja, a capacidade do regime de efetivamente assegurar a liberdade e a igualdade por meio do controle e responsabilização de governos e políticos pelos eleitores, assegurando o primado da lei e a participação das pessoas comuns.
É um engano analítico sério considerar que, porque o chamado presidencialismo de coalizão garante a governabilidade, a democracia brasileira não enfrenta problemas. A governabilidade, na democracia, não diz respeito somente à capacidade do governo de fazer o que quer, o seu sucesso se mede também por quanto as suas ações asseguram os direitos, inclusive, de os eleitores efetivamente influírem nos rumos do processo político. No Brasil, a despeito dos altos índices de popularidade do presidente Lula, a maior parte das pessoas está insatisfeita com o funcionamento prático da democracia.
Esse regime perde qualidade quando a obrigação de governantes e representantes parlamentares de prestar contas de sua conduta e de suas ações é fraudada. Essa obrigação envolve tanto o direito dos eleitores de serem informados do que está sendo feito em seu nome, com base nas promessas eleitorais (responsabilização), quanto a obrigação do Legislativo e do Judiciário de controlarem e fiscalizarem a conduta e a lógica de ação do Executivo (accountability horizontal). A singularidade da democracia está no monitoramento pelas instituições da ação de quem tem poder, se e quando elas cumprem a sua missão.
Nesse sentido, a atual crise do Senado revela três questões inter-relacionadas.
Em primeiro lugar, há a sua crise propriamente institucional. Se quiserem recuperar o seu papel na democracia brasileira, os senadores terão de abrir mão de suas práticas corporativistas e de benefícios próprios, retomar a produção legislativa e responder às grandes questões nacionais. Mas isso implica ter respostas claras e inovadoras para temas delicados, como o das medidas provisórias ou a primazia do Executivo em definir unilateralmente a agenda do Legislativo, e para as propostas de extinção do Senado. Hoje a maioria não dá sinais de perceber a relevância dessas questões. Nem de querer enfrentá-las.
Em segundo lugar, a crise evidencia a sobrevivência da cultura política patrimonialista. Representantes tradicionais dessa cultura, como Sarney e os seus, ganharam sobrevida política nos últimos tempos com o apoio do presidente Lula e do PT. Ao contrário da promessa de sua fundação, o PT e o presidente escolheram uma forma de fazer política essencialmente conservadora, temerosa de qualquer mudança, conivente com o que há de pior na política brasileira. Para manter o poder tanto o "mensalão" como as irregularidades de Sarney, Renan Calheiros e outros são apresentados ao País como "normais" ou parte de um estilo de governança que não se envergonha de ferir as regras republicanas nem o princípio de que todos são iguais perante a lei.
Por fim, a retórica de Lula e dos seus aliados para convencer a opinião pública de que tudo vai bem não esconde as consequências antidemocráticas da estratégia dominante. Para assegurar a governabilidade e o apoio do PMDB em 2010 o presidente, mais uma vez, absolve os acusados de irregularidades antes dos ritos e investigações devidos e, como já fizera com outros partidos políticos, quando estimulou a migração de parlamentares de pequenas legendas para as que apoiavam a sua coalizão governista, ou no episódio do "mensalão", quando partidos e parlamentares receberam recursos "não contabilizados" para votar em projetos do governo, ele não hesita em desconstruir institucionalmente o seu próprio partido, humilhando seus líderes e fragilizando a conexão entre representantes e representados (Aloizio Mercadante que o diga).
Essas escolhas comprometem a responsabilidade esperada das lideranças políticas na construção da democracia. Este regime depende sempre da existência de boas instituições, mas só cumpre as suas promessas se e quando quem se supõe que sejam líderes democráticos mostre à sociedade, por sua conduta e por seu exemplo, não só que a democracia precisa ser defendida contra os seus inimigos, mas que ela é a melhor opção mesmo quando pune os políticos supostamente democráticos que atentam contra a dimensão republicana da democracia.
A tragédia da situação atual é que nem os líderes do governo nem os da oposição conseguem apontar uma saída eficaz para a crise. Todos parecem solidários em suas causas e efeitos. O acordão político que selou a decisão do Conselho de Ética do Senado de arquivar sem exame as acusações contra Sarney e Virgílio sinalizou esse entendimento para o público.
José Álvaro Moisés, professor de Ciência Política e diretor
do Núcleo de Pesquisa de Políticas Públicas da USP, é autor do livro Os Brasileiros e a Democracia (Ática, 1995) E-mail: jamoises@usp.br
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