sábado, agosto 22, 2009

Editorial de O globo

Sob tutela

Quando uma doutrina autoritária chega ao poder, ela pode se expressar de várias formas, e até, à primeira vista e formalmente, dentro da lei. Há medidas tomadas, nas esferas federal e estadual, em que são bastante visíveis as impressões digitais de um tipo de visão segundo a qual a sociedade precisa ser vigiada, tolhida e, se for o caso, punida, para adotar "bons costumes".

A questão da proibição do fumo em qualquer espaço público comercial, em São Paulo e agora no Rio, é emblemática. Lastreada em propósitos louváveis - a preser-vação da saúde -, a proibição, por radical, cassa o direito do fumante, ao suprimir as áreas antes reservadas para ele.

Outra característica desta doutrina autoritária é eximir o Estado de responsabilidades, punindo terceiros por delitos configurados como tais por este tipo de norma. No caso do fumo, a punição recai sobre o dono do bar, do restaurante, do que seja. Em vez de o poder público se responsabilizar pela repressão, ela é transferida, por imposição pecuniária, a outros.

O mesmo ocorreu na louvável repressão ao uso do álcool por motoristas. Em vez de se ampliar a fiscalização policial nas estradas, tentou-se proibir a venda de bebidas no comércio à margem das rodovias, em prejuízo dos lojistas. Quase, também, fizeram o mesmo com as lojas de conveniência urbanas.

O novo enquadramento das farmácias é típico. Por determinação da Agência de Vigilância Sanitária (Anvisa), do Ministério da Saúde, os estabelecimentos passam a ser proibidos de vender mercadorias que não sejam medicamentos. A decisão carece de lógica, por ser risível o argumento do combate à automedicação. Mais uma vez, pune-se o empresário porque o Estado não consegue fazer cumprir a regra da obrigatoriedade de receita médica para certos remédios.

A mesma Anvisa, por causa deste viés autoritário, move intensa cruzada contra a publicidade de medicamentos - as de antigripais foram suspensas por causa da gri-pe suína - e de alimentos para crianças. Ou seja, os pais e as pessoas em geral precisam ser contidas na ânsia consumista, pois não têm discernimento para decidir o que é bom para a família.

A visão de um Estado tutelador de uma sociedade tida pela autoridade pública como infantil e imatura também transparece na ação do Ministério da Saúde de fazer desaparecer o antiviral Tamiflu das farmácias, eficaz droga contra a gripe suína, supostamente também para evitar a automedicação. Não é leviandade pensar que pessoas possam ter morrido pela falta do remédio nas prateleiras do comércio, somada à incapacidade de o Estado distribuí-lo pela rede pública.

O Brasil vive uma fase kafkiana: há liberdade, democracia, mas direitos individuais, inscritos na Constituição, começam de forma crescente a ser tolhidos por normas, portarias e leis redigidas alegadamente para defender a população. O Estado quer trancar a sociedade numa redoma, em nome da segurança dela, e ficar com a chave.

(Editorial de O Globo, dia 22 de agosto)

1 Comments:

Anonymous PC said...

Estamos caminhando para uma tutela total do Estado em todos os sentidos, estamos sendo monitorados 24 h, é o Estado dizendo o que podemos comer, beber, onde devemos ir, em nome da segurança, até coisas banais, corriqueiras do dia a dia, temos que dar satisfação ao Estado. O exemplo claro disto, é quando você compra uma passagem intermunicipal ou estadual, tem um bilhete que você precisa preencher, e ali você precisa dizer se a sua viagem é a passeio, familiar, negócios, etc, o mesmo ocorre em hotel, ora bolas, para onde vou e o que vou fazer é problema meu, o Estado não tem nada com isso. Que sociedade é essa, que em nome da segurança quer nos conduzir como gado num imenso rebanho.

7:51 PM  

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