A Farsa do Federalismo Fiscal
Tom Jobim, certa ocasião, afirmou que o Brasil não é um país para amadores. De fato, somente um apurado senso de profissionalismo é que nos permite conviver com esquisitas peculiaridades.
Tomemos, a título de ilustração, o nebuloso campo do federalismo fiscal brasileiro. Nosso sistema está fundado em competências tributárias próprias dos entes federativos e transferências intrafederativas, compulsórias e voluntárias.
O Brasil é a única federação no mundo que admite o município como ente federativo. A despeito disso, a imensa maioria dos municípios é totalmente dependente de transferências federais e estaduais. Muitos deles foram criados com a finalidade exclusiva de receber maior volume de transferências por conta do Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Antes que pareça demasiado estranho, explico-me. O modelo de partilha do FPM é tão primitivo que toma por base faixas populacionais. Para uma determinada faixa populacional, os municípios têm o mesmo coeficiente de participação. Assim, se um município que se encontra na faixa mais inferior for desmembrado em dois municípios, esses dois municípios terão o mesmo coeficiente do original e, em conseqüência, cada um deles receberá praticamente o que recebia o anterior. Trata-se, curiosamente, de um fenômeno multiplicativo em que a soma das partes torna-se maior que o todo.
Vereadores bem remunerados e com baixa exigência de dedicação ao trabalho, administrações operosas em abrigar afilhados políticos, liberdade para criar municípios e o milagre da multiplicação dos recursos do FPM são razões que explicam o crescimento superior a 100%, em termos de número dos municípios, desde a promulgação da Constituição de 1988.
Desde o início da década de 80, há uma expansão continuada nos percentuais do IPI e do Imposto de Renda destinados a transferências para os Estados e Municípios, dentre elas o FPM. Duas conseqüências: como não existe uma concomitante repartição dos encargos públicos, cada vez mais a União fica tentada a suprir suas necessidades fiscais por meio de aumento das contribuições sociais, resultando em uma configuração singular e estranha do sistema tributário brasileiro; as entidades subnacionais, especialmente as mais pobres, são estimuladas a prosseguir na escalada do gasto perdulário ou assistencialista. Desse modo, o FPM se parece cada vez mais com uma espécie de bolsa-família dos municípios.
Estamos às vésperas da imperiosa exigência de prorrogação, pela via constitucional, da CPMF e da Desvinculação de Receitas da União (DRU), sem o que sucumbe o equilíbrio fiscal da União. Cria-se, portanto, um clima favorável para chantagens e barganhas políticas.
Percebendo essa janela de oportunidade os prefeitos, reunidos em associação, resolvem pressionar o Executivo Federal para lograr o aumento de um ponto nos percentuais do IPI e do Imposto de Renda destinados à formação do FPM. Certamente, muitos estudiosos estrangeiros ficariam espantados em saber da existência de uma associação de prefeitos, como se eles constituíssem uma classe com interesses comuns. Uma corporação, enfim. Poderia, certamente, deixá-los ainda mais perplexos, se lhes dissesse que, quando Secretário de Estado em Pernambuco, há mais de 25 anos, conheci uma associação de “suplentes de vereadores” (sic) que alardeava seu prestígio, alegando que teriam tido mais votos que os vereadores eleitos! Coisas do Brasil.
A comitiva dos prefeitos, com o espantoso patrocínio do Banco do Brasil, Caixa Econômica, Petrobrás, Aneel e Sebrae, fez uma assembléia em Brasília, à qual compareceu o Presidente da República que, ao fim de voluntarioso discurso, anunciou que atenderá o pleito de aumento do FPM. Tudo à semelhança de um pai bonachão e poderoso que atende caprichos de um filho adolescente. Nenhuma justificativa para o aumento. Nada de discutir uma partilha clara de encargos ou, ao menos, o disciplinamento do art. 23, parágrafo único, da Constituição. Apenas um arroubo de demagogia fiscal.
Os recursos que serão transferidos ou eram excedentes fiscais ou irão fazer falta ao erário. Na primeira hipótese, melhor seria reduzir a pressão fiscal; na outra, será inevitável que haja algum tipo de aumento, provavelmente de contribuição social.
Município subsidiado, União paternalista, anarquia na distribuição de responsabilidades entre as entidades federativas, transferências centradas em parte da arrecadação federal resultando em preferências apriorísticas na formulação das políticas tributárias, lei de responsabilidade fiscal que não se leva a sério, equilíbrio fiscal sob permanente suspeita, tudo isso compõe um enredo de ópera-bufa no federalismo fiscal brasileiro.
Reverter esse quadro requer um enorme capital político combinado com a visão estratégica de um estadista. Infelizmente, estamos longe disso.
Everardo Maciel é ex-secretário da Receita Federal. (do Blog do Noblat)
Marcadores: Municípios
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