Loteamento da República
Rolf Kuntz, no Estadão
Tentem explicar a um estrangeiro: um mês e meio depois da posse, o governo federal não está formado, o presidente negocia ministérios com partidos e políticos aliados e só não distribuirá os de sua cota. Com algum esforço, o estrangeiro poderá entender a primeira parte. Mas ficará boquiaberto, provavelmente, quando lhe falarem da cota presidencial. Não é ele o responsável pelo governo e não lhe cabe, portanto, o direito exclusivo de nomear e demitir ministros?
Nenhuma dessas perguntas é ingênua ou sem sentido. Se os brasileiros não se espantam, é porque se acostumaram ao loteamento de cargos, em todos os níveis, como parte da vida política nacional. Não se trata apenas de repartir os ministérios, como se os aliados - partidos e pessoas - tivessem direito a pedaços do governo.
Com os postos principais, entrega-se também o direito de nomear o pessoal do segundo escalão e os dirigentes de autarquias e de estatais, assim como funcionários, dezenas ou centenas, acomodados em postos de confiança.
Tudo se passa como se, entregue o ministério ao premiado, o presidente da República deixasse de ser o responsável pela operação da máquina pública. Os postos mais altos são disputados encarniçadamente, como se fossem passíveis de apropriação por grupos ou indivíduos. Diretores de autarquias e de empresas são identificáveis como afilhados do senador Fulano ou como representantes de tais ou quais grupos partidários.
O retalhamento da máquina é raramente mostrado ao público. Em geral, só se trata abertamente do assunto em duas circunstâncias: no começo do governo, quando se negocia a primeira divisão, e, mais tarde, quando aparecem bandalheiras de grande repercussão, como as dos últimos dois anos.
Conhecida a roubalheira, a imprensa informa quem indicou tal diretor para os Correios ou para o Instituto de Resseguros ou tal funcionária para o Ministério da Saúde. Mas o responsável pela indicação é raramente alcançado pelas conseqüências do escândalo.
Nem sempre esse responsável é um político nacionalmente conhecido. O pivô de uma bandalheira como a das ambulâncias pode ter sido indicado por um parlamentar obscuro. Até as investigações começarem, a maioria dos leitores de jornais pode nunca ter visto uma referência a seu nome.
Isso é possível, no Brasil, porque nada é mais privatizável, neste país, do que o próprio governo. Essa afirmação é verdadeira para todos os níveis da administração. A palavra empreguismo traduz imperfeitamente a natureza do problema. O mal não está somente na distribuição de empregos, salários e mordomias a afilhados e companheiros. A distorção é mais grave que isso, porque atinge a essência do regime político.
A violação mais evidente é a da regra da impessoalidade e da competência na administração pública. Essa norma, inscrita na Constituição, reflete a noção moderna de governo como organização burocrática. Essa noção é um dado histórico. Tornou-se um padrão comum à maior parte do Ocidente com a consolidação do Estado moderno. Uma das características desse processo foi a separação entre a figura privada e a figura pública dos governantes e dos funcionários. Ao mesmo tempo, houve a separação progressiva entre os bens particulares dessas figuras e os meios empregados a serviço da sociedade politicamente organizada. No Brasil, essa distinção foi desconhecida durante séculos e ainda não foi assimilada por muitos políticos, especialmente pelos herdeiros materiais e espirituais do velho patrimonialismo.
Mas o caso brasileiro tem uma particularidade notável. Que os herdeiros daquela tradição ignorem ou desprezem o sentido clássico do republicanismo não é nenhuma surpresa. Eles permanecem, de forma indisfarçável, incapazes de estabelecer a separação entre a coisa pública e o bem privado.
As emendas ao orçamento - para mencionar só um exemplo - são disso uma prova ostensiva. Espantosa, mesmo, é a disposição dos políticos e grupos autoclassificados como progressistas para se apropriar do público e usá-lo para fins particulares - porque são particulares tanto os fins pessoais quanto as conveniências partidárias.
Tudo isso é feito como se o loteamento de cargos em todos os níveis da administração fosse mero exercício democrático do poder. Mas não é necessária muita sutileza para perceber a diferença entre compor um governo, atribuição de qualquer presidente, e distribuir ministérios, secretarias e diretorias para uso e benefício de grupos e de pessoas, como se fossem o preço de uma aliança política.
Isso nada tem de democrático nem de republicano.
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