sábado, novembro 03, 2012


20/10/2012 - FOLHA DE SP - DRAUZIO VARELLA

Duzentos anos de medicina

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"The New England Journal of Medicine", a revista de maior circulação entre os médicos, completa 200 anos.
Publicado em 1812, o primeiro número trazia um artigo de John Warren (1753-1815), um dos fundadores da Harvard Medical School. Nele, o médico descrevia os sintomas e o tratamento de um religioso que se queixava de dores fortes no peito, aos menores esforços.
Do ponto de vista científico, a descrição dos sintomas de insuficiência coronariana é impecável, mas o tratamento realizado é de assustar. O paciente, um "clérigo pletórico", foi tratado com estimulantes, sangria e aplicações locais de éter. Em seguida, "recebeu novas sessões de sangria, ópio, laxativos poderosos e agentes cáusticos aplicados sobre a pele do esterno".
Como os sintomas persistiram, Warren tentou uma resina de asafétida --planta caracterizada pelo odor pútrido-- e aplicou nitrato de prata nos braços e nas coxas, com a intenção de abrir fissuras na pele para drenar os maus fluidos.
Embora sejam consideradas absurdas, é preciso entender que essas práticas pareciam sensatas numa época em que os médicos e a população acreditavam que os estados de saúde e doença dependiam do equilíbrio entre o fluxo dos quatro humores corpóreos: sangue, fleuma, bile negra e bile amarela.
Para eles, um bom remédio deveria provocar sintomas suficientemente intensos para restaurar a harmonia entre os humores. Por exemplo, alguém convencido de que suas agruras resultavam do mau funcionamento dos intestinos, sentiria alívio ao receber vomitórios e laxantes. Eram os tempos da "medicina heroica", segundo a qual quanto mais grave a enfermidade, mais agressivo o tratamento.
Em 1812, o "The New England" recomendava "sangria copiosa" nos casos de ferimento por arma de fogo, estratégia bizarra, mas que conseguia diminuir os sinais de inflamação e a temperatura corpórea, dando a impressão de que não ocorreriam complicações supurativas ou gangrena. O mesmo procedimento era indicado para abaixar a febre da malária.
Ainda na primeira metade do século 19, o francês Pierre Louis (1787-1872) criou o "método numérico", ao comparar dois grupos de pacientes com pneumonia tratados com ou sem sangria, sem encontrar diferença na evolução entre eles.
A partir daí, a filosofia de ceticismo que tomou conta da prática médica encontrou em Oliver Holmes (1809-94) sua maior expressão. Em 1860, ele afirmou: "Se toda a matéria médica, como hoje é empregada, fosse afogada no fundo do mar, seria muito melhor para a humanidade --e muito pior para os peixes".
Essa postura niilista, no entanto, jamais se tornou popular, porque nenhum médico encontra permissão moral para cruzar os braços diante do sofrimento humano.
Em 1846, a revista publicou o artigo em que William Morton (1819-68) descrevia a anestesia com éter. A descoberta, no entanto, demorou mais de cinquenta anos para revolucionar a prática cirúrgica, porque os cirurgiões precisavam decidir se a analgesia justificava os riscos de morte por septicemia.
Apenas no início do século 20 surgiram as técnicas de assepsia e os rituais das equipes nas salas de operação, responsáveis pela redução das complicações infecciosas.
Em 1912, quando a revista completou cem anos, Paul Ehrlich (1854-1915), em Berlim, sintetizou um composto dotado de ação contra a sífilis, o Salvarsan. Foi a primeira prova do conceito de que os medicamentos deveriam ser específicos para a doença e não para cada doente em particular.
A descoberta teve impacto limitado, porque a especificidade do Salvarsan era mais teórica do que empírica. Apesar de beneficiar alguns pacientes, a droga provocava efeitos colaterais intensos e não agia em todos os casos de sífilis.
O pioneirismo do Salvarsan também se manifestou ao expor pela primeira vez as limitações da abordagem reducionista em medicina: a sífilis não se restringia ao Treponema pallidum, envolvia comportamento sexual, aspectos morais e discriminação social. Destruir a bactéria era condição necessária, mas não suficiente para combater a epidemia.
A revolução da farmacoterapia ainda levaria pelo menos trinta anos para acontecer. Apenas na década de 1950, cerca de 4.500 drogas novas entraram no comércio, nos Estados Unidos.
O impacto dessas descobertas analisaremos na próxima coluna.




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Drauzio Varella - FOLHA SP - 031112

Os últimos cem anos

A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da medicina na saúde pública
Duzentos anos atrás, as sangrias ainda estavam na moda. Era a época da medicina heroica, segundo a qual quanto mais grave a doença, mais agressivo o tratamento.
Na última coluna, falamos da resenha recém-publicada no "The New England Journal of Medicine", sobre a evolução da terapêutica médica desde que a revista entrou em circulação, em 1812. Mostramos que, até o começo do século 20, os tratamentos eram baseados num nebuloso equilíbrio que deveria existir entre os humores corpóreos (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra) da pessoa enferma, e não no processo que a fazia adoecer.
Na metade do século 19, o ceticismo provocado pelos insucessos dessa estratégia despertou interesse crescente pelas causas das patologias.
Motivados pelos avanços na fisiopatologia e na bacteriologia, os médicos começaram a interpretar as doenças como entidades específicas, que apresentavam causas próprias e manifestações clínicas características.
O novo modelo levou-os a procurar tratamentos ajustados à enfermidade, sem agredir o paciente. A busca, no entanto, percorreu caminhos tortuosos que levariam décadas para encontrar o rumo.
Como vimos, a primeira pista viria do laboratório de Paul Ehrlich (1854-1915), em Berlim. Depois de 605 fracassos, Ehrlich e colaboradores sintetizaram o Composto 606, ativo contra a sífilis, que se tornou conhecido como Salvarsan. Era a primeira prova do conceito de que o tratamento deveria ser específico para cada patologia.
Muitos reagiram contra essa mudança de paradigma. Temiam que o enfoque na doença afastasse os profissionais do lado mais nobre: a arte de praticar medicina.
A revolução da terapêutica só tomaria corpo nas décadas de 1940 a 1960, período em que foram licenciados mais de 4.500 produtos novos: antibióticos, anti-hipertensivos, hipoglicemiantes, antidepressivos, hormônios e muitos outros.
Em 1961, um estudo mostrou que para cada dólar gasto com medicamentos, 70 centavos iam para remédios que não existiam dez anos antes.
O entusiasmo despertado pelas descobertas da indústria farmacêutica fez surgir novas formas de ceticismo. Nas páginas do "New England", apareceram termos como "selva terapêutica" e "lavagem cerebral" patrocinada pelo marketing da indústria.
Então, sobreveio a tragédia da talidomida. Prescrita como sedativo e no combate às náuseas da gravidez, a talidomida provocou defeitos graves na formação de braços e pernas de bebês pelo mundo todo. Em 1962, um editorial da revista afirmava: "Somente a vigilância continuada e intensiva pode prevenir a repetição dessa experiência".
A preocupação com a segurança deu origem às normas rígidas dos estudos fase 1, 2 e 3 exigidos atualmente para aprovação de novas drogas.
A renascença do ceticismo provocou questionamentos sobre o papel da medicina na saúde pública. Em 1962, Thomas McKewon publicou uma análise do número de casos de tuberculose na Inglaterra e País de Gales, mostrando que a incidência havia começado a cair antes mesmo da descoberta do bacilo de Koch. O declínio estaria associado à melhora da alimentação e das condições de moradia.
O entendimento de que a descoberta de remédios eficazes é condição necessária, mas não suficiente, para ter impacto na saúde pública, seria confirmado não apenas no combate às epidemias de Aids, sífilis, tuberculose ou malária, mas até no controle de doenças degenerativas como hipertensão arterial e diabetes.
Dos purgativos, sangrias e vomitórios prescritos para recompor o equilíbrio dos humores do paciente de 200 anos atrás, a medicina que chegou ao século 21 evoluiu para utilizar drogas mais seguras, desenvolvidas para interferir especificamente com os mecanismos moleculares envolvidos na fisiopatologia.
Como nas demais "revoluções terapêuticas" dos últimos dois séculos, outra vez o progresso estará longe de ser linear e contínuo. Haverá fases de entusiasmo alternadas com frustração e ceticismo.
À medida que a atenção médica se volta para as minúcias dos alvos moleculares, corremos risco de ficar mais expostos à abordagem reducionista de destruir germes, células malignas, trocar genes e reparar mecanismos defeituosos, sem levar em conta que a função primordial de nossa profissão é aliviar o sofrimento humano.

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