sexta-feira, junho 24, 2011

A intervenção humana e os recursos naturais

Autor(es): João Furtado e Eduardo Urias
Valor Econômico - 24/06/2011
 
A contribuição mais rica da ciência econômica à compreensão das atividades primárias e do papel dos recursos naturais prende-se à seguinte proposição: recursos naturais não existem; eles precisam ser criados. O conteúdo dessa afirmação não é autoevidente e pode mesmo causar estranheza. Vamos torná-lo mais claro.
Qual é a relação da agricultura com as terras? São as terras que fazem possível a agricultura ou é a agricultura que torna as terras agriculturáveis? É claro que a agricultura depende de terras, mas é a dedicação à agricultura que cria terras adequadas, ao lado de outros recursos.
Assim tem sido desde a antiguidade, mundo afora e no Brasil. O aproveitamento das terras às margens do Nilo, no Egito Antigo, dependeu do conhecimento sobre o regime de águas e levou ao estudo dos astros. O desenvolvimento sustentável da agricultura demanda esforços, investimentos.
São evidências disso o desenvolvimento de técnicas de domínio dos ciclos das águas, de proteção do solo e das culturas, de limpeza e fertilização do solo, de adequação das sementes e das variedades de plantas a cada tipo de condição de solo e clima, e tantos outros.
A terra estava longe de ser um recurso, era um recurso em porvir, e nunca viria a ser sem a ação deliberada do homem. Foi a pesquisa agrícola que criou as terras agrícolas adequadas do centro-oeste; foi a ferrovia que criou os eixos que moldaram a geografia de São Paulo (Araraquarense, Mogiana, Paulista, Sorocabana), tornou terras aptas ao cultivo, depois levou à indústria.
A riqueza do minério está muito menos nele do que nos esforços que têm que ser mobilizados para a sua exploração
A mineração suscita uma reflexão análoga. Para que os recursos naturais tenham valor econômico e social, é preciso criá-los. É necessário, primeiro, identificar a jazida. Isso ocorre com prospecção, um trabalho não trivial. De atividade de homens práticos tornou-se o negócio de pessoas preparadas científica e tecnicamente no século XIX, quando os EUA criaram diversas escolas superiores e formaram profissionais em geologia. Entre a identificação do minério e seu uso industrial existe um longo percurso, envolvendo planejamento e execução. É ele que cria o recurso (dito) natural, por intervenção humana.
Os EUA exploraram intensamente seus recursos minerais no século XIX. A exploração das reservas aumentou-as - um paradoxo aparente que ajuda a entender o conceito de recursos naturais. A exploração mineral não resultou em esgotamento, mas ampliou a disponibilidade desses recursos e a riqueza associada. Cada ciclo de descoberta e de valorização dos recursos estimulou mais esforços e descobertas. O desenvolvimento de soluções em uma exploração permitiu o seu uso em outras oportunidades, gerou novas soluções. A exploração de uma mina com certo teor permitiu, depois, desenvolver minas com teores inferiores. A exploração cria recursos.
Para explorar um recurso é necessário mobilizar antes outros recursos. A inteligência e o conhecimento dos geólogos, a informação computacional e os modelos complexos e sofisticados que auxiliam na interpretação dos "dados" (aliás, que também não são dados, nem achados, são coletados, processados, interpretados), os equipamentos e os indivíduos que se deslocam para o campo, as amostras coletadas, os projetos para viabilizar o empreendimento, os recursos financeiros mobilizados para permitir os investimentos são atos econômicos criadores de riqueza antes que a mina possa produzir o primeiro resultado material próprio. São apostas privadas com resultados sociais; e eles precedem qualquer resultado que possa ser apropriado pelo empreendedor, pela empresa, pelos investidores.
A riqueza do recurso natural está muito menos nele próprio do que nos recursos produtivos que têm que ser mobilizados para sua exploração. É ela que incita a criação de conhecimentos, competências, capacidades, equipamentos, instalações, insumos, energia, combinações de todos esses elementos e capacidades de coordenação para explorar o recurso mineral. Para o empreendedor, o recurso só será rentável quando a venda do resultado da exploração superar os investimentos realizados; mas para a sociedade, a riqueza foi criada desde que o primeiro investimento foi realizado, desde a prospecção até o momento em que os minérios começam a ser produzidos.
Uma exploração bem sucedida suscita novos investimentos, novas mobilizações de recursos, novas prospecções, e com isso vão aumentando os resultados e as reservas. É por isso que os recursos não são, eles tornam-se, vêm a ser: se o ambiente favorece a atividade, se uma exploração produz resultados consistentes com o investimento realizado, o ânimo dos investidores é reforçado e com isso as atividades de prospecção crescem e as reservas podem ver-se ampliadas.
Foi assim que os EUA, que Benjamin Franklin e seus contemporâneos viam como pobre em recursos minerais e fadados a ser um país agrícola, se tornaram um país mineral e industrial.
A atividade primária (e a mineração, especificamente) é dinâmica. Para que a mineração possa cumprir um papel relevante no desenvolvimento de um país é necessário criar vínculos entre cada exploração e as explorações posteriores. Numa economia cada vez mais integrada no plano internacional, a possibilidade de selecionar alguns projetos (e não outros) torna a competitividade de uma determinada exploração um elemento chave para a decisão sobre as próximas explorações. Se o empreendimento, a empresa e os investidores, zelosos dos seus recursos financeiros, são levados a quebrar o ciclo virtuoso da exploração que multiplica os recursos, então a redução da exploração pode conduzir à redução das reservas.
O país que alimenta o seu ciclo virtuoso aumenta a sua produção e as suas reservas, enquanto o país que reduz a sua produção reduz também as suas reservas. Recursos não são, recursos tornam-se: pelos esforços e pela aplicação sistemática do principal recurso criado pela ação humana - o conhecimento. É o conhecimento que produz todos os recursos, inclusive os que chamamos naturais.
João Furtado economista, é professor da Poli (USP), coordenador de inovação da Fapesp e diretor da Elabora Consultoria.
Eduardo Urias economista, é mestre em Política Científica e Tecnológica e doutorando na Universidade de Maastricht

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