domingo, agosto 01, 2010

Para não repetir erros

Miriam Leitão, O Globo

A maioria dos brasileiros de hoje não viu a ditadura que tornava qualquer pequena rebeldia em ato contra a segurança nacional. Tem apenas vagas lembranças, ou relatos da família, sobre a hiperinflação que tornava cada ato banal da vida, como fazer as compras do mês, pagar as escolas das crianças, planejar as férias de fim de ano, um enorme tormento que exigia cálculos, perícia e capacidade de prever o imprevisível.

Hoje, quando a preocupação que mobiliza os analistas é se a inflação do ano ficará um ponto ou 0,75 ponto percentual acima dos 4,5% da meta, parece delirante aquele cotidiano.

Mês passado, na cidade em que nasci, me encontrei com sete amigos de adolescência. Éramos nos anos 70 jovens românticos com a dose certa de rebeldia e inquietação de uma juventude saudável. Nosso maior desafio à ordem vigente era ler tudo o que conseguíamos ler, e passar horas em discussões infindáveis sobre como enfrentar o poder militar, como se tivéssemos essa força.

Nos relatos dos serviços secretos do regime, fomos definidos como "o grupo Caratinga", e tratados como ameaça ao regime. Tempos depois fomos todos presos; alguns sofreram muito. O reencontro foi para uma delicada homenagem da cidade.

Na praça principal foi colocada uma placa com nossos nomes e a frase: "Para que não se esqueça e nunca mais aconteça." O difícil foi explicar para os jovens o que o grupo tinha feito de tão ameaçador. Eles não entendiam como nossos pequenos atos de contestação poderiam ter levado alguém à prisão. Pois é. Era outro tempo, felizmente findo.

Saímos do horror político para o econômico. No início do período democrático a inflação disparou chegando à hiperinflação. Outro dia, vi um ministro do atual governo acusar um dos seus críticos de ter "criado a hiperinflação."

É preciso não ter entendido coisa alguma do complicado processo para achar que aquela longa doença foi imposta pela ação de uma só pessoa. Ela nasceu dos equívocos cometidos ano após ano na economia brasileira.

Uma de suas raízes foi, sem sombra de dúvida, a desordem fiscal deixada como herança pelos militares. Eles achavam que o Estado tinha o poder de forçar o crescimento econômico através da distribuição de favores, subsídios e dinheiro público a algumas empresas escolhidas.

Eles achavam que era inofensivo criar atalhos na contabilidade do dinheiro público, através dos quais se gastava muito sem que isso aparecesse nas contas públicas.

Eles estavam convencidos de que bancos públicos e empresas estatais devem ser braços do governo para políticas públicas discutíveis, e que podem emprestar dinheiro umas às outras na base da camaradagem.

O país perdeu anos para entender o mal feito e sanear os enormes e intrincados passivos que ficaram desse período do voluntarismo econômico e de descuido fiscal.

Uma lição foi que a conta não aparece de imediato. Num primeiro momento, tudo parece até meritório já que o país cresce em marcha forçada. A segunda lição é que a conta sempre chega. A economia não aceita desaforos. Ela os devolve em forma de inflação, recessão, desequilíbrios.

O pior que pode acontecer a uma geração é não saber onde foi que ela se perdeu. Na política, o erro foi a falta de respeito à democracia representativa. Com todos os defeitos que tenha, seus rituais têm que ser seguidos rigorosamente. Decisões da Justiça têm que ser cumpridas. Limites à ação do governante têm que ser respeitados. Palavras dos líderes de menosprezo às instituições devem ser evitadas.

O cientista político Jorge Castañeda, no debate com Roberto da Matta que mediei, disse que o governo da Venezuela não pode ser descrito como uma ditadura, como aquelas que a América Latina viveu nos anos 70, mas não é mais uma democracia.

O entendimento de quanto Hugo Chávez está minando as bases democráticas é fundamental para se saber que erros evitar. Seu ataque sistemático à independência dos poderes, à liberdade de imprensa são perigosos demais num continente onde a democracia é recente e de presença errática.

Não por acaso é a Venezuela que vive a maior inflação do continente. Pode chegar a 40% este ano. Não por acaso é o país onde o presidente decide que empresas devem viver, atuar, investir; ou que empresas terão seus bens estatizados.

O Brasil sabe o que deve evitar. Em alguns dos seus atos, o governo atual tem perigosamente repetido o intervencionismo econômico, a distribuição de favores às empresas, a criação de atalhos fiscais que nos levaram à longa doença econômica. Hoje, tudo parece festa. O Brasil é uma festa. Só não vê os riscos os muito jovens.

Os que repetem hoje os erros de ontem nem podem alegar desconhecimento. Eles viram o resultado. Pertencem às gerações que perderam anos no esforço de corrigir o legado dos equívocos econômicos. Uma geração pode ser considerada definitivamente perdida quando comete duas vezes o mesmo erro. É o que me assusta quando vejo velhos desvios repetidos no tempo presente.

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