sábado, março 27, 2010

Gosta de lei quem dela precisa

Do blog do Alon:

Quem tem uma caneta poderosa ou uma conta bancária gorda pode mobilizar mundos e fundos para tentar se salvar nas situações enroladas. Quem não tem nenhuma das duas depende de o estado de direito funcionar bem

Faz mal o presidente da República quando desdenha de punições impostas pela Justiça Eleitoral, por campanha antecipada para a candidata do PT. Há o argumento institucional: Luiz Inácio Lula da Silva deveria ser o primeiro a dar o exemplo, a prestigiar o funcionamento do estado de direito democrático.

Se o presidente pode escolher as leis que vai respeitar e as de que vai desdenhar, por que os demais cidadãos não podem também desfrutar da confortável escolha?

A legislação eleitoral é até certo ponto bizarra, por pretender definir um “momento zero” nas eleições? Sim, tanto que o presidente e sua candidata, assim como os nomes da oposição, trafegam nas brechas e dubiedades do texto para tocar adiante as campanhas, convenientemente chamadas de “pré”.

Mas o jogo está aí para ser jogado dentro das regras, enquanto não forem mudadas. Existe uma Justiça Eleitoral, e quando ela se manifesta as decisões devem ser cumpridas. E respeitadas.

Quem discorda pode continuar discordando, os punidos podem recorrer (se couber recurso), mas o acordo fundamental em sociedades civilizadas e democraticamente organizadas é aceitar e respeitar sentenças judiciais.

E a desobediência civil? Não é admissível em certas circunstâncias?

Talvez, mas é preciso saber quando. Suponha que o pai e a madrasta de Isabella Nardoni tivessem sido absolvidos. Seria socialmente quase insuportável. Mas seria necessário pagar essa conta, pela existência do estado de direito.

Respeitar a Justiça quando ela nos favorece ou quando concordamos com as decisões é moleza. Ninguém precisa ser muito democrata para isso.

Por falar em coisas bizarras, presidente da República ensaiando desobediência civil é bizarro à enésima potência. Quando não dá certo, acaba dando muito errado.

O mais adequado para Lula seria sair dessa rapidinho, descer do salto alto, parar de dar ouvidos a quem o trata como imperador genial e potencialmente perpétuo do Brasil. Parar de se achar.

É uma praga que dá no poder, bem descrita na literatura. Para proteger a teia alimentar, áulicos isolam o príncipe da realidade e passam a desqualificar a crítica e os críticos. Em teoria, estão defendendo o chefe. Na prática, tentam defender cada um seu próprio espaço de micropoder. Ou nem tão micro.

Mas há outro aspecto a tocar. Se Joãosinho Trinta fosse cientista político e não carnavalesco, talvez dissesse o seguinte: “O povo gosta de cumprir a lei, quem gosta de bagunça e confusão é intelectual”. O tema tem sido retomado recentemente pelo cientista político André Singer, professor da USP.

Por que o cidadão comum, sem poder e sem dinheiro sobrando, é adepto da legalidade? Fácil de responder.

Quem tem uma caneta poderosa ou uma conta bancária gorda pode mobilizar mundos e fundos para tentar se salvar nas situações enroladas. Quem não tem nenhuma das duas depende de o estado de direito funcionar bem.

A lógica muda quando o desarranjo do tecido social chega ao ponto de a maioria da sociedade ser empurrada para soluções à margem da lei. Mas mesmo quando isso acontece o primeiro movimento na nova ordem é restabelecer a normalidade da vida cotidiana. São forças centrípetas poderosíssimas.

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