sábado, fevereiro 07, 2009

Todos iguais perante a ilegalidade

60 % dos prefeitos reeleitos estavam impliados em ilícitos administrativos de relevo

Miguel Reali Júnior, Estadão

Dos prefeitos reeleitos em 2008, muitos sofriam processos judiciais ou perante os Tribunais de Contas em face de irregularidades graves, como constatou levantamento da Corregedoria Geral da União. O número é, sem dúvida, significativo: foram reeleitos mais de 60% dos prefeitos implicados em ilícitos administrativos de relevo, como ausência de licitação, não-comprovação de gastos, uso de notas fiscais frias, desvio de verba da merenda escolar, distribuição de Bolsa-Família a filhos e parentes de políticos.

Uma pesquisa contratada pelo Tribunal Superior Eleitoral ouviu 2 mil eleitores, sendo o resultado compatível com a reeleição de agentes políticos envolvidos em graves irregularidades, pois mais de 50% dos entrevistados consideram irrelevante o que fez ou deixou de fazer o candidato, por ser seu "conhecido", pouco importando o passado. Outros 20%, mesmo sem conhecer o candidato escolhido, não se interessaram em indagar acerca de sua vida pregressa.

Muitos candidatos, novatos ou veteranos na política, são réus em processos criminais ou em ações civis públicas que se prolongam por anos. Se o povo é indiferente à existência de processos contra o candidato, que escolhe por simpatia ou amizade, sendo de somenos a acusação de seu envolvimento em corrupção, poder-se-iam simplesmente proibir candidaturas de condenados em primeira instância? Caberia, a partir desta condenação, qualificar o candidato como "ficha-suja"?

Esses caminhos afrontariam a presunção de inocência, que é essencial, não apenas como princípio abstrato, pois a minha prática advocatícia por longo tempo demonstrou quantas vezes uma condenação em primeira instância ou mesmo em segunda vem a ser reformada com a indicação clara da injustiça do anterior veredicto condenatório. A Justiça Eleitoral, interessada em promover uma melhor escolha dos candidatos, diante da ausência de critérios éticos por parte dos eleitores, não pode, portanto, suprir esta falha moral do eleitorado com impedimentos a candidaturas sem um juízo final condenatório. O que resta, então, fazer?

A solução seria impor aos partidos o dever de informar, no horário eleitoral, quais dos seus candidatos sofrem processos, sem deixar de alertar, por exemplo, que eventual condenação em primeira instância ainda poderá reverter-se em absolvição. Dessa forma o partido respeitaria o princípio da transparência acerca dos seus candidatos, do qual o dever de informar é consequência. Duvido, no entanto, que se aprove tal medida.

Resta, então, a seguinte alternativa: o próprio Tribunal Eleitoral pode promover essa divulgação, pois se constatou que nos municípios onde rádios locais divulgaram a existência de ilegalidades no exercício do mandato prefeitos candidatos à reeleição foram malsucedidos.

De outra parte, grave questão fica a pairar no ar: por que o nosso povo é tão indiferente ou mesmo conivente com a imoralidade administrativa?

Para se entender esta conduta com relação à coisa pública, creio ser necessário sair da análise do comportamento no plano político para buscar resposta no exame do modo de ser do nosso eleitorado no universo micro do dia-a-dia.

O jornal A Tarde, de Salvador, em 10 de janeiro noticiou que, apesar de proibido, o trânsito de veículos motorizados (motos, quadriciclos e carros) nas praias do litoral baiano, de Itaparica a Barra Grande, tem sido intenso. Testemunhei esse abuso em Barra Grande, recanto de praias encantadoras perturbadas pela passagem imprudente de motos e quadriciclos. A maioria das placas de proibição e dos obstáculos de acesso foi arrancada. Ao se reclamar, a desculpa normal é: todo mundo anda, por que eu não?

Turistas mostram arrogância reagindo ao protesto de sua passagem com sinais indecorosos, muito ufanados de seu poder aquisitivo exibido a bordo de quadriciclos coloridos. Trabalhadores locais correm pela areia em motos gastas. Conhecido comerciante, em potente utilitário 4 x 4, trafegava pela praia em que crianças corriam. Indagado por que razão infringia a lei protetora do meio ambiente e da segurança das pessoas, justificou-se pelo mau estado da estrada interna. Quando não se reage ofensivamente, encontra-se sempre uma desculpa esfarrapada.

Está aí um exemplo de afronta não só à lei, mas ao que indica o mínimo bom senso, para prevalecer a comodidade e o prazer da velocidade à beira-mar, a mostrar como os pobres e os ricos podem não ser iguais perante a lei, como diz a Constituição, mas são iguais perante a ilegalidade.

A satisfação do desejo imediato coloca-se, sem pestanejar, acima do racionalmente certo e legalmente imposto, com profunda condescendência consigo mesmo, para, com malícia, contar com a prática do erro pela maioria a justificar a própria falta.

Assim, age-se como se o País fosse terra de ninguém, onde tudo é permitido menos cumprir a lei, por ser isto muitas vezes socialmente objeto de chacota. Esta mentalidade se acentua ao se criar a expectativa da impunidade, pois se trocam ilicitudes: não se reclama do vício do outro para que não reclamem do seu.

Na vida pública prevalecem as relações pessoais, o compadrio, o protecionismo, a se ver o nepotismo em todos os Poderes, inclusive no Judiciário. Como disse Roberto DaMatta, 30 anos atrás, o sistema legal, universal e impessoal, é permeado pelo sistema das relações pessoais. A amizade sobrepuja qualquer outro valor moral: o corrupto conhecido merece o voto.

A indiferença ética alastra-se no País e hoje contamina até o Judiciário, como se vê no Espírito Santo e no Maranhão, onde a Ordem dos Advogados denunciou a venda de sentenças.

Só exemplos vindos de cima e um largo processo educacional, mormente nos meios de comunicação, poderão vencer esta falha moral, que programas de baixo nível como o Big Brother apenas reforçam.

Miguel Reale Júnior, advogado, professor titular da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Paulista de Letras, foi ministro da Justiça

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