segunda-feira, dezembro 17, 2007

Corrupção, judicialização e república
Por Fernando Filgueiras, Valor Econômico

Desde 2005, o Brasil vive uma devassa nos esquemas de corrupção traçados por diferentes grupos compostos por políticos, empresários e funcionários públicos do primeiro e do segundo escalão do governo. Pensando a seqüência de escândalos, percebe-se que a corrupção compõe o cotidiano da política brasileira. Tanto à esquerda quanto à direita, a corrupção tornou-se prática cotidiana no serviço público, confundindo-se mais com a regra de atuação de políticos e burocratas do que, propriamente, a exceção e o desvio de conduta.

A explosão dos escândalos de corrupção e o fato de ela se tornar aparente ao público nasceram com a democratização. A liberdade de imprensa, a competição política e a participação da sociedade civil possibilitaram esse contexto, uma vez que tornaram a corrupção aparente ao público. O grave, entretanto, é que essa mesma realidade institucional da democracia se mostra em um perfeito estágio de paralisia.
Não conseguimos avançar nos mecanismos de controle da corrupção. O alcance da corrupção e o modo como ela se esparramou pelo Estado brasileiro demonstram a necessidade urgente de reformas. Mas elas não saem.

Dentre os três poderes, a vítima foi o Legislativo, que é visto pela sociedade civil com uma ampla desconfiança, chegando inclusive a se contestar a legitimidade do Congresso Nacional. Basta pensar a proposta escabrosa de extinção do Senado, que foi aventada durante o escândalo Renan. Tendo sua legitimidade contestada, o Legislativo não tem clima para produzir a reforma política, criando um cenário de paralisia em que a corrupção apresenta-se como endemia.

Quando a corrupção se torna aparente ao público, cria-se um estado de perplexidade e histeria ética, que percebem a corrupção apenas por uma visão penal. A vida republicana passa a ser vista por uma visão do direito penal, em que o endurecimento das penas torna-se panacéia para todos os males da corrupção. E o mesmo estado de paralisia institucional permanece, à medida que os escândalos de corrupção continuam a aflorar, sem que haja respostas por parte das próprias instituições.

O mais curioso é que as atuais transformações no plano das instituições não passam pelo sistema de representação, via Legislativo. O Congresso fechou os olhos à opinião pública e aos interesses dos representados, tornando-se um órgão burocrático e apenas uma massa de manobra por parte do governo. Do ponto de vista da própria cidadania, resta apenas o Judiciário como caixa de ressonância dos interesses e dos valores.

Há, no Brasil, um processo de judicialização da política, em que juízes e promotores assumem o papel de guardiões da esperança democrática. No dizer do eminente magistrado francês, Antoine Garapon, o Judiciário tornou-se o muro das lamentações das sociedades contemporâneas, colocando o juiz no turbilhão das transformações sociais, políticas, culturais e econômicas.

A judicialização da política é o processo de acordo com o qual o campo político adota, cada dia mais, os procedimentos e os rituais inerentes ao mundo judicial, fazendo do juiz o protagonista da cena política, porquanto a linguagem dos direitos e da democracia exigem a intervenção do Judiciário nas disputas políticas. Ou seja, é cada vez maior a influência do Direito e seus procedimentos na vida política, configurando um processo em que os magistrados se tornam protagonistas da cena política, cabendo-lhes a responsabilidade por concretizar o ideal democrático dos direitos e princípios constitucionais.

Se a democratização iniciada com a Constituição de 1988, no Brasil, implicou um novo papel para a magistratura, ampliou, também, o leque de responsabilidades, fazendo do juiz o emissário capaz de enunciar os princípios designados pelo Constituinte, tal como o da moralidade administrativa. O problema é que a Justiça retirou a venda de seus olhos e passou a direcionar o olhar aos interesses e à opinião pública. É o caso da regulamentação da fidelidade partidária por parte do TSE.

Se o Judiciário é o muro das lamentações da sociedade contemporânea, o caminho que se tem adotado para o controle da corrupção no Brasil parte exatamente da atuação de magistrados e promotores. Imbuídos do espírito republicano de democracia, o Judiciário tem atuado para combater a corrupção, afirmando o princípio da moralidade administrativa estampado na Carta Magna. Nesse sentido, afirmam a consonância dos direitos com a atuação maciça na esfera pública, pronunciando o princípio da moralidade como valor fundamental da República e suas instituições, arvorando-se ao papel de fazer as reformas.

A intervenção de juízes e promotores no problema da corrupção, portanto, parte, para além da legalidade e dos ritos processuais, de um exercício de uma pedagogia cívica, afirmando os valores de uma cidadania ativa, capaz de fazer ressurgir o ethos republicano das virtudes. O problema é que a permanente exposição dos juízes na mídia e a densidade dos interesses representados na esfera judicial podem provocar desvios dessa nova aristocracia. Ao denunciar os vícios dos outros poderes, esquece-se de olhar para os próprios desvios.

O resultado é que, para a democracia, incorre o perigo de uma contestação da legitimidade do Judiciário para conduzir as reformas. Como se trata de um órgão de natureza puramente burocrática, não é devido a ele representar interesses no âmbito da esfera pública. Cria-se, como no caso do deputado Ronaldo Cunha Lima, a inversão de princípios processuais básicos, como o da presunção de inocência. O risco é a democracia tornar-se refém da atuação da magistratura e seus arroubos de moralidade e moralização.

Uma aristocracia judicial é o pior dos males para um Estado de Direito, porquanto os juízes não têm legitimidade para se tornarem representantes dos interesses. Por outro lado, a eles cabe o papel de guardiões da Constituição, com base em práticas que suscitem o decoro, visto que são os baluartes da vida republicana. Eis a contradição em nossa vida democrática.
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Fernando Filgueiras é doutorando em Ciência Política no IUPERJ e pesquisador associado do Centro de Referência do Interesse Público da UFMG.
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